Datas de Estreia: | Nota: | ||
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Brasil | Exterior | Crítico | Usuários |
23/12/2022 | 23/11/2022 | 4 / 5 | 4 / 5 |
Distribuidora | |||
Netflix | |||
Duração do filme | |||
139 minuto(s) |
Dirigido e roteirizado por Rian Johnson. Com: Daniel Craig, Edward Norton, Janelle Monáe, Kathryn Hahn, Kate Hudson, Leslie Odom Jr., Dave Bautista, Jessica Henwick, Madelyn Cline, Noah Segan, Jackie Hoffman, Hugh Grant, Dallas Roberts, Ethan Hawke, Stephen Sondheim, Natasha Lyonne, Serena Williams, Kareem Abdul-Jabbar, Yo-Yo Ma, Joseph Gordon-Levitt e Angela Lansbury.
Uma das boas surpresas de 2019, Entre Facas e Segredos, escrito e dirigido pelo aparentemente infalível Rian Johnson, executou de forma impecável várias tarefas simultâneas: contava com uma trama bem construída e que convertia convenções do gênero em surpresas; intrigava através da subversão de sua estrutura, que já esclarecia como o milionário Harlan Thrombey havia morrido já no primeiro ato; e nos apresentava a um detetive cujos modos e sotaque atípicos eram rivalizados apenas por sua insuspeita competência. Assim, quando uma continuação foi anunciada, revelando que Benoit Blanc, personagem de Daniel Craig, se envolveria em um novo caso, a ideia apenas seguiu a tradição da literatura policial (e suas adaptações) ao reconhecer que, mesmo trazendo boas reviravoltas, este é um gênero que depende consideravelmente do interesse despertado pelo detetive criado para decifrá-las.
Assim, apesar do subtítulo desajeitado (“Um Mistério/Caso de Benoit Blanc” seria bem mais apropriado), Glass Onion já nasceu com uma vantagem em relação ao seu antecessor, não sendo acaso que, desta vez, Craig assuma claramente a função de protagonista antes desempenhada por Ana de Armas: já devidamente apresentado ao espectador (que em Entre Facas e Segredos era até levado a duvidar da eficiência do sujeito), Blanc agora pode ter sua personalidade e suas idiossincrasias exploradas mais a fundo, o que nos permite conhecer até seu namorado/marido (numa ponta que eu jamais me atreveria a revelar). Ao mesmo tempo, Johnson volta a elaborar um enredo complexo que dá voltas sobre si mesmo sem jamais perder o controle, amarrando todas as pontas, por menores que sejam, numa arquitetura dramática tão satisfatória que o impulso imediato é de assistirmos novamente ao filme para conferirmos cada elemento e o modo como se encaixam no resto – e se esta última frase por acaso soar familiar é porque foi exatamente a que escrevi ao discutir o longa anterior.
É inevitável, porém que eu me repita ao abordar Glass Onion, já que Johnson demonstra imensa coesão narrativa ao montar suas tramas, planejando estruturas que a princípio soam simples e diretas até que uma revisita por um diferente ponto de vista expõe elementos antes ignorados e que recontextualizam tudo que julgávamos saber. Neste aspecto, a estratégia do realizador faz eco à definição musical de “fuga” que o violoncelista Yo-Yo Ma oferece em uma rápida ponta e que envolve precisamente a sobreposição gradual de vozes: “A fuga é um belo enigma musical com base em uma única melodia; quando você sobrepõe essa melodia a si mesma, ela começa a mudar e vira uma nova e bela estrutura”.
Aliás, este não é o único diálogo presente no roteiro que acaba ganhando/revelando um significado adicional no decorrer da projeção; por mais trivial que certas falas possam soar, há geralmente um propósito maior – e citá-las aqui seria um spoiler não por entregarem revelações (sem o contexto, não o fariam), mas por tirar a graça da descoberta de que revelavam algo. Dito isso, darei um único exemplo por admirar a ironia que contém e que diz respeito ao desejo do bilionário Miles Bron (Norton) de ser lembrado no mesmo fôlego que a “Mona Lisa”. (Ah, sim, uma breve sinopse cabe aqui: Glass Onion acompanha a influencer Birdie Jay (Hudson), o cientista Lionel Toussaint (Odom Jr.), a governadora Claire Debella, o vlogger Duke Cody (Bautista) e a empresária/visionária Andi Brand (Monáe) em uma visita de fim-de-semana à ilha grega pertencente ao já mencionado Miles, que propõe aos amigos um “mistério” como passatempo apesar de alertado por Blanc, também presente, de que isto poderia plantar a ideia de matar o ricaço na mente de alguém.)
Seguindo com reverência algumas das convenções da literatura policial estabelecidas por Agatha Christie (entre outros; mas a britânica é a principal influência de Johnson), o filme situa seus acontecimentos em uma locação fantástica e traz uma galeria de personagens com vastos motivos para eliminar alguém – personagens que, também seguindo as adaptações cinematográficas dos livros de Christie, são vividos por atores renomados, formando um elenco notável. Claro que o próprio tamanho deste elenco acaba por inviabilizar um desenvolvimento mais profundo de suas personalidades, que passam a ser definidas por um ou dois traços bem definidos e que cada intérprete abraça com empenho divertido, permitindo também que o cineasta satirize grupos específicos que merecem o ridículo (e que, não menos importante, passaram a infernizar o diretor por se atrever a fugir do óbvio no magnífico Os Últimos Jedi – e, não à toa, o misógino Duke traz uma tatuagem do Império em um dos dedos). É inspirada, em especial, a composição de Kate Hudson, que ilustra o eterno ciclo percorrido por tantos influencers: ações/falas polêmicas seguidas por pedidos de desculpas que logo dão lugar a um complexo de perseguição por “terem a coragem de dizer o que pensam”, o que leva a novas controvérsias e a novas desculpas e assim em diante. Neste sentido, vale notar que Glass Onion incorpora a pandemia ao seu universo, sendo justamente a influencer, claro, a primeira a desrespeitar o distanciamento social (e a máscara de renda que usa é, como todo o resto em sua vida, pura vitrine).
Enquanto isso, Edward Norton (um ator que admiro desde sua estreia em As Duas Faces de um Crime) encarna Miles Bron como um amálgama de Elon Musk, Steve Jobs e Elizabeth Holmes, construindo em torno de si uma mística de genialidade que não necessariamente corresponde à realidade (Musk não criou o PayPal e a Tesla; Jobs era mais um excelente vendedor do que inventor, deixando esta função para Wozniak; e Holmes… bom, pesquise “Theranos” e saberá). Por outro lado, Janelle Monáe, que a princípio parece viver a figura mais desinteressante do longa, aos poucos ganha a oportunidade de demonstrar o talento e o carisma vistos em Moonlight e Estrelas Além do Tempo.
Com um design de produção formidável na concepção da mansão de Miles – dos móveis de vidro no escritório do bilionário à grande sala que abriga boa parte da história e inclui miniambientes com personalidade distinta -, Glass Onion também se beneficia do ótimo desenho de som de Josh Gold, que se destaca, por exemplo, ao empregar notificações de telefone e ruídos do vidro de proteção de um quadro para gerar tensão, o que é ressaltado pela montagem dinâmica (mas didática na revelação de cada elemento relevante) de Bob Ducsay, colaborador habitual de Johnson.
Mais uma vez ridicularizando a superficialidade e a mediocridade das “elites” econômicas, Rian Johnson vem se firmando, com apenas seis longas-metragens em seu currículo, como um realizador com preocupações temáticas claras e que sabe mesclá-las aos seus exercícios de gênero com eficiência – e o melhor: com um senso de humor contagiante.
E por mais que eu queira vê-lo explorar e expandir seu talento para outros gêneros e temáticas, admito que não ficaria de todo insatisfeito caso passasse o resto da carreira criando novos mistérios para Benoit Blanc, que pode se tornar o personagem definitivo de Daniel Craig. E considerando que este viveu ninguém menos do que James Bond, esta é uma expectativa e tanto.
04 de Janeiro de 2023
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